Reportagem do Colóquio “Amílcar Cabral e a História Do Futuro”

Reportagem do Colóquio “Amílcar Cabral e a História Do Futuro”

29 Janeiro 2023 |

A 13 e 14 de janeiro, largas dezenas de pessoas passaram pelo Auditório António de Almeida Santos na Assembleia da República para participar no Colóquio: “Amílcar Cabral e a História do Futuro” centrado na análise da influência política, teórica e cultural de Amílcar Cabral.

A abertura do Colóquio esteve a cargo de Augusto Santos Silva, Presidente da Assembleia da República, que começou por refletir sobre a centralidade de ideias como as da “cultura como resistência” e da “libertação como ato de cultura” na obra de Amílcar Cabral. Foi ainda reconhecida a importância da realização deste colóquio nos cinquenta anos do assassinato de Amílcar Cabral. Também Fernando Rosas, representando a iniciativa Abril É Agora, sublinhou o simbolismo da realização deste evento na Assembleia da República portuguesa. Referindo-se às raízes de um “africanismo livre de uma tutela colonial”, Fernando Rosas evocou nomes como os de Viriato Cruz, Mário Pinto de Andrade, Eduardo Mondlane ou Amílcar Cabral recordando a “esperança com que partiram para a luta” e centrando-se no papel da obra de Amílcar Cabral enquanto instrumento de luta “contra a tirania das novas extremas-direitas”. António Sousa Ribeiro, presidente do CES, recordou o dia do assassinato de Amílcar Cabral e a importância da discussão do seu legado no contexto de uma “sociedade atrasada na discussão do seu legado colonial”. A investigadora do IHC, Joana Dias Pires, apontou para uma conferência virada para o futuro e para a importância da recordação dos “horizontes utópicos” representados pela figura de Amílcar Cabral como ato de resistência e desafio a um “presentismo” dominante. Marga Ferré, representante da Transform Europe, e Bruno Sena Martins, em representação do projeto de investigação CROME, encerraram o painel de abertura remetendo para o “realismo radical”, a dimensão global do pensamento de Amílcar Cabral e o seu papel na luta contra o imperialismo nas suas diversas formas.

A primeira mesa de trabalho dia remeteu para a “Guerra Colonial e as lutas de libertação: memórias e silenciamentos”. Miguel Cardina debruçou-se sobre os “desafios públicos da memória pública da guerra colonial” refletindo, entre outros, sobre a necessidade de repensar os modos de memorialização do conflito e sobre a necessidade de “combater o prolongamento do feitiço imperial no espaço público, nos currículos escolares e nos discursos dominantes” enquanto mecanismos para se começar a desenhar a “história do futuro”. De seguida, Carlos Cardoso chamou à atenção para a “tensão entre esquecimento e memória” convocando um ditado africano: “até que os leões inventem as suas próprias histórias, os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça” para pensar a necessidade da construção de novas narrativas sobre a história do colonialismo e das lutas de libertação. Partindo da sua investigação sobre as mulheres da Guiné-Bissau, Patrícia Godinho Gomes falou de uma história que “do silencia à insubmissão” destaca a centralidade das narrativas das mulheres não só pela sua relevância histórica, mas, sobretudo, pela “relevância intelectual que assumem hoje para pensar a Guiné-Bissau do futuro”. Por último, Claúdia Castelo partiu do estudo da Casa dos Estudantes do Império para pensar os espaços de socialização e de consequente formação anticolonial dos jovens que viriam a dirigir as lutas de libertação dos países sob o jugo do colonialismo português, citando-a: “encontramos neste espaço o cruzamento de biografias que usaram a margem estreita de liberdade que tinham para construir a liberdade”.

Na segunda mesa do dia dedicada aos “trajetos de vida” e à “memória viva” de Cabral começou por intervir Julião Soares Sousa centrando-se na relação entre as representações de Amílcar Cabral enquanto “herói” e “mártir” e a recusa que o próprio fazia a um “culto da personalidade”. José Pedro Castanheira partiu das suas reportagens para falar sobre a autoria do assassinato de Amílcar Cabral questionando uma “versão oficial do crime” e pensando a complexa trama entre os mecanismos repressivos do estado colonial e a dissidência interna ao PAIGC que termina com a morte de Cabral. Por sua vez, Leonor Pires Martins abordou as diferentes “representações do assassinato de Amílcar Cabral” pensando as “biografias das biografias de Cabral” e a imagem multifacetada que dele projetam e onde coabita a imagem do revolucionário, do diplomata ou do intelectual. Partindo de um conjunto de diferentes imagens e do trabalho preparatório para uma exposição a inaugurar no fim de março, José Neves pensou sobre a circulação e a presença das imagens de Amílcar Cabral na atualidade em diferentes formatos refletindo sobre a “memória viva” desta figura.

A aguardada intervenção do antigo Presidente da República de Cabo Verde o Comandante Pedro Pires abriu a tarde. Cruzando a história da sua vida “comprometida com a causa da libertação” com o legado de Amílcar Cabral, Pedro Pires refletiu sobre a singularidade de uma figura que considera ter acelerado consideravelmente o seu tempo histórico tendo transformado os povos da Guiné e de Cabo Verde em “sujeitos históricos da sua própria libertação”.

Para o Comandante Pedro Pires, a maior proeza do PAIGC e de Amílcar Cabral foi a da transformação de uma maioria do campesinato guineense “no sustentáculo humano e económico da realização e triunfo da luta política armada de libertação”, ou seja, o desenvolvimento das ferramentas políticas necessárias para “transformar o impossível em possível”. Refletindo sobre a “revolução política e cultural camponesa enquanto condição indispensável para o sucesso” da luta de libertação, Pedro Pires sublinhou a “excecionalidade, lucidez e inteligência estratégica” do seu antigo companheiro de luta. Sobre o legado de Cabral, Pedro Pires sublinhou a importância da vitória do PAIGC para o incremento de uma “autoestima e confiança” ao “oferecer uma perceção vencedora e dignificante do futuro dos povos africanos”.

O também fundador da Fundação Amílcar Cabral chamou ainda à atenção para a centralidade da “geração Amílcar Cabral”, aquela que desempenhou um papel decisivo e se assumiu protagonista da “opção política arrojada da rutura com o estado colonial” e da edificação dos novos estados assegurando assim “a perpetuação da memória” de Amílcar Cabral. Antes de ser ovacionado de pé, Pedro Pires chamou à atenção para um legado “vivo, interpelador e questionador” que exorta “a que pensemos por nós”.

O último painel do dia centrou-se em Amílcar Cabral e a “imagem em movimento”. Filipa César, sublinhou o carácter libertador da abordagem de Cabral à agronomia referindo-se a um “Cabral em permanente luta” partindo desta sua dimensão para refletir sobre o cinema enquanto espaço de “celebração da pluralidade étnica da Guiné-Bissau”, princípio basilar do cinema militante guineense deste período. De seguida, o cineasta Sana na N’Hada reconheceu na luta de Cabral a razão que o permitia “estar ali”: “sou o produto da luta do Amílcar Cabral no nosso país”. Sana na N’Hada centrou-se na relação do cinema militante com a construção da “unidade e luta”, central à luta do PAIGC, a partir do reconhecimento do “mosaico étnico-cultural da Guiné-Bissau”. Diana Andringa recordou os seus trabalhos sobre a Geração de 60 e as dificuldades em aceder à “imagem em movimento” de Cabral e da luta do PAIGC afirmando que “a censura cortou o presente e privou as gerações vindouras do futuro”. Por fim, Diana Andringa referiu-se ao papel de jornalistas e cineastas na divulgação internacional da luta pela libertação de Cabo Verde e da Guiné-Bissau e ao papel que Cabral reconhecia na necessidade do desenvolvimento de um cinema nacional, parafraseando-o, “para guardar a memória do nosso país”.

O dia terminou com a projeção de “O Regresso de Cabral” de Djalma Fettermann, Flora Gomes, José Bolama, Josefina Crato e de Sana na N'Hada que respondeu às perguntas da audiência sobre o filme.

O segundo dia do colóquio abriu com uma mesa de trabalho dedicada à produção escrita de Amílcar Cabral. Ângela Coutinho sublinhou o trabalho desenvolvido com a Fundação Amílcar Cabral destacando um crescente “interesse no legado teórico de Cabral”. Referindo-se a um “renascimento de Cabral”, Ângela Coutinho destacou a influência do “humanismo radical” de Cabral em países como os Estados Unidos da América. A oradora debruçou-se ainda sobre a necessidade da constituição de uma comissão de verdade histórica para esclarecer e assumir os crimes e massacres ocorridos durantes as guerras de libertação por parte do estado colonial português. De seguida, Mustafah Dhada destacou a “elevada produtividade textual de Cabral” distribuindo-a por um conjunto de diferentes fases da sua vida e revelando a sua capacidade de adaptação a diferentes públicos. Sublinhando uma bifurcação dos estudos sobre Cabral entre “o que ele fez” e “o que ele disse”, Mustafah Dadah recuperou alguns aspetos de um corpo escrito “profundo” e que considera “transcender ideologias”. Por último, Roberto Vechi pensou a “inovação linguística” em Cabral enquanto um meio da “transformação política”. Partindo da análise da textualidade de Cabral, o orador relacionou a “exigência histórica da prática revolucionária” com a exigência de “uma renovação literária”. Falando de uma “textualidade orientada para o futuro” capaz de “transcender o material” e abrir espaço para uma “idealização do futuro em contacto com o real”, Roberto Vechi sublinhou as várias formas como Cabral fez do texto uma ferramenta política.

A segunda mesa do dia dedicada às dimensões internacionais da luta de Amílcar Cabral abriu com a intervenção de Rui Lopes em torno da descolonização, da Guerra Fria e da figura de Cabral. Problematizando a identificação da “luta anticolonial” com o “vento da história” Rui Lopes chamou à atenção para o alinhamento do regime português com a NATO e os Estados Unidos da América. A partir desta perspetiva, é Amílcar Cabral e o PAIGC quem desafia Portugal e a ordem internacional da guerra fria. Por último, o autor reclamou a atualidade do legado de Cabral enquanto “inspiração para desafiar a aceitação cega da ordem internacional”. Também Aurora Almada Santos se focou na dimensão internacional desta luta partindo da análise da “atividade diplomática do PAIGC e de Amílcar Cabral”. Destacando diferentes fases desta diplomacia correspondentes a diferentes fases da luta do PAIGC a oradora centrou-se no impacto das viagens de Cabral e nas trocas de correspondência como prática diplomática.

De seguida, Teresa Almeida Cravo procurou dar conta das perceções ocidentais da luta do PAIGC e da figura de Amílcar Cabral de forma a compreender o “impacto deste tipo de representações nas relações entre os países do ocidente e do sul global num contexto pós-colonial”. Para a oradora, a Guiné-Bissau capta a atenção internacional assumindo-se enquanto “epíteto da descolonização armada” para o que terá contribuído a liderança e o prestígio internacional de Amílcar Cabral. Vicente Russo abordou a relação entre Cabral e o contexto nacional italiano. O orador, sublinha a que a ideia de “existe uma sobreposição entre a experiência da resistência contra o fascismo com as lutas do então chamado terceiro mundo” resultaram na popularização da figura de Cabral em Itália. Chamando à atenção para a ambiguidade da posição do estado italiano, Vicente Russo passou pensou o significado de momentos como os do encontro entre Cabra e o Papa Paulo VI ou do crescimento da tradução das obras de Amílcar Cabral para a língua italiana.

A tarde de sábado abriu com uma mesa dedicada à “política, cultura e utopia” em Amílcar Cabral. Miguel de Barros começou por pensar sobre o “sonho no espaço tradicional africano” encarando-o enquanto uma “instância que mobiliza”. De seguida, o orador centrou-se na forma como a criação artística através do teatro, do rap, do cinema ou da arte urbana resgataram Cabral a partir da rua e de um espaço periférico. Questionando-se sobre a forma como “a juventude africana contemporiza Cabral através do seu pensamento e ação”, Miguel de Barros debruçou-se sobre a atualização e confrontação de Cabral com o presente através destas práticas culturais. Também Rui Cidra partiu da questão musical para refletir sobre o legado na atualidade da luta de Cabral e do PAIGC, recordando a partir das palavras de Cabral que “é no terreno da cultura que as transformações ocorrem e que as tensões se expressam e resolvem”. O orador partiu dos exemplos da poesia da morna e do funaná para pensar as práticas repressivas do colonialismo português, mas também a sua tarefa “revolucionária” na construção dos novos estados independentes. De seguida, Sílvia Roque partiu da sua investigação sobre a perceção e o significado de Cabral para a juventude guineense dando conta do contraste entre um “esquecimento e apagamento de Amílcar Cabral da esfera pública” e “a memória celebratória” de uma figura “só ultrapassada pelas mães e avós” dos jovens da Guiné-Bissau. Foi ainda realçada uma dimensão do legado de Cabral enquanto critíca a uma “política pós-colonial” por concretizar”. Por último, Redy Wilson Lima falou de “Cabral como uma manifestação atual da transgressão”. A partir dos seus trabalhos sobre os processos juvenis urbanos em Cabo Verde, o orador centrou-se no papel do rap enquanto veículo para a divulgação e perpetuação do legado de Cabral e na centralidade da cultura e de uma “construção colaborativo do conhecimento” enquanto ferramentas para o crescimento de movimentos sociais transformadores.

O encerramento do colóquio ficou a cargo das intervenções de Beatriz Gomes Dias e Bruno Sena Martins em torno dos desafios e significados da descolonização.

Bruno Sena Martins destacou Cabral enquanto uma “figura incómoda” na medida em que interpela diretamente o presente no sentido da “constituição de possibilidades de emancipação”. Refletindo sobre o carácter transnacional da figura e das lutas de Amílcar Cabral, Bruno Sena Martins falou de uma luta anticolonial que representava já uma luta pós-colonial sublinhado os vínculos desta luta com movimentos antirracistas em todo o mundo e com a luta do povo português contra o regime fascista. Destacando a necessidade em “convocar as vozes da luta de libertação” o orador sublinhou a “ausência de uma narrativa anticolonial e antirracista” expressa nas “profundas lógicas de desigualdade socioeconómica” e na “exposição à violência” que marca o quotidiano das populações negras. Por fim, foi retomada a ideia da incomodidade do legado de Cabral com Bruno Sena Martins a referir que: “a libertação que era prometida implicava uma revolução cultural onde os espaços metropolitanos aprendessem com o que foi desenhado e construído nas colónias” e pelos movimentos das lutas de libertação nacionais.

Beatriz Gomes Dias encerrou o colóquio assemelhando o exercício da recordação de Cabral com o da “abertura de uma porta para deixar a luz entrar”. “Vivemos no mundo que herdámos do mundo colonial” referiu a oradora dando conta que o fim da ocupação colonial não acabou com “as práticas coloniais e com a ideia de uma hierarquia de humanos”. Opondo 50 anos de esperança a 500 anos de exploração, Beatriz Gomes Dias falou do período de descolonização enquanto “materialização de uma esperança” que se confronta com um “legado pesado que se mantém em Portugal”. A atualidade do legado de Cabral confunde-se com as “continuidades da luta anticolonial” num território que “recria práticas de segregação do período colonial” e remete as populações negras para as “margens da existência”. “A luta antirracista é a afirmação do sujeito político negro que é herdeira das lutas de libertação, a luta antirracista procura completar o processo de descolonização”, concluiu.