Colóquio “60 Anos de Lutas Estudantis: Do Passado ao Futuro”

Colóquio “60 Anos de Lutas Estudantis: Do Passado ao Futuro”

Faculdade de Economia de Coimbra foi palco de colóquio sobre 60 anos de lutas estudantis

1 Abril 2022 |

Historiadores, sociólogos e ativistas estudantis trocaram ideias sobre a história do movimento estudantil - das lutas contra a ditadura e o colonialismo às lutas estudantis na democracia - bem como apontaram hipóteses e caminhos a seguir face aos desafios com que hoje nos confrontamos.

Miguel Cardina, em nome da organização, explicou que, com este colóquio, se pretendeu “ir além da crise de 1962”, que identificou como “um momento de uma dinâmica muito mais vasta de politização do movimento estudantil, que tem antecedentes e se prolonga até ao fim da ditadura e que, depois, reconfigurada, vai surgir já noutras circunstâncias muito distintas, no pós 25 de Abril”.

O historiador apontou que a iniciativa pretendeu “trazer o resultado de investigação histórica que foi sendo feita e acumulada nas últimas décadas, numa lógica de divulgação e debate também para as novas gerações”.

O Colóquio “60 Anos de Lutas Estudantis: Do Passado ao Futuro” teve início com um painel sobre as lutas estudantis contra a ditadura, a guerra colonial e o colonialismo. Num segundo momento, estiveram em debate as lutas estudantis durante o período democrático. A iniciativa terminou com uma mesa com jovens ativistas, onde se debateram os caminhos e as possibilidades do movimento estudantil e da intervenção juvenil hoje em dia.

Os movimentos estudantis e as lutas contra a ditadura e o colonialismo

Fernando Rosas debruçou-se sobre “As três épocas do movimento estudantil contra a ditadura (1956-1974)”. A sua intervenção foi, “simultaneamente, testemunhal e de registo histórico”, na medida em que o historiador “participou pessoal e ativamente em todos os movimentos das crises académicas desde 1962 até 1969”.

Fernando Rosas defendeu a ideia de que “a luta estudantil contra a ditadura, e depois contra a guerra colonial, contribuiu para forjar uma corrente geracional multifacetada e plural do ponto de vista político, ideológico, mas que teve uma importância decisiva na alteração nas relações de hegemonia na resistência ao regime e na preparação do ambiente que viria a preparar a sua queda e a transformação do golpe militar na Revolução de 1974/75”.

A intervenção de Álvaro Garrido recaiu, por sua vez, sobre “O movimento estudantil de 1962: Coimbra e Lisboa, imagens e significados”.

No seu entender, as “lutas estudantis são movimentos sociais que pedem um compromisso analítico entre a história vivida pelos protagonistas e o modo como se tem escrito e rememorado essa história”. Nesse sentido “este colóquio vai, de alguma forma, ao encontro desta perspetiva de conjugação de perspetivas”, das “lutas permanentes entre a memória e a história”.

“Culturas de rebeldia e luta estudantil no final do regime” foi o tema da intervenção de Rui Bebiano. De acordo com o historiador, as lutas estudantis neste período englobam “um conjunto de fatores particularmente significativos, que se articulam com as questões da rebeldia, mas que, ao mesmo tempo, apontam para dinâmicas que importa sublinhar e que, por vezes, não são muito consideradas, mesmo por quem estuda estes temas”.

Rui Bebiano abordou questões que se prendem com os ritmos, realidades, momentos e dinâmicas geográficas e temporais do movimento estudantil que, algumas vezes, são bastante diferentes. Falou também sobre a radicalização do movimento, e a agudização da repressão que sobre este recaiu. A cultura mundo que nasce nos anos 60, a cultura anti-disciplinar contra valores, práticas e hierarquias que se tinham perfilhados como dominantes, a cultura do novo, a hibridez cultural, o novo lugar ocupado pelas mulheres, a nova cultura estudantil cosmopolita e anti-nacionalista, anti-tradicionalista, anti-elitista foram algumas das questões levantadas pela sua análise.

Já Cláudia Castelo transportou-nos para “Os alicerces e as pontes da Casa: o anticolonialismo, a oposição à ditadura e a luta estudantil”. 

A historiadora explicou que a Casa dos Estudantes do Império (CEI) combinava uma “articulação entre reflexão crítica, política e cultural” e que os seus associados “constituíam pontes que ligavam a CEI aos seus territórios de origem”. Cláudia Castelo assinalou a importância da CEI na denúncia do que se passava nas ex-colónias e o seu contributo para uma reflexão crítica sobre o colonialismo. Muitos dos sócios gerentes da CEI tornaram-se “dirigentes dos movimentos de libertação nacional ou companheiros de estrada dessa luta”.

A historiadora descreveu ainda as perseguições por parte do regime de que foi alvo a CEI durante a crise estudantil e falou sobre a sua participação no luto académico e nas greves.

Lutas estudantis na democracia

Luísa Tiago de Oliveira interveio sobre “Estudantes e Revolução”. A historiadora deu conta do ativismo desenvolvido pelos estudantes durante a Revolução no que respeita às reformas curriculares, participação na gestão, alteração do sistema de avaliação, e aos debates frontais nas escolas, “que, muitas vezes, assumiram forma de verdadeiras batalhas campais”. Mas também às atividades desenvolvidas fora das escolas, incluindo as atividades de educação popular, as campanhas de alfabetização e educação sanitária no âmbito da pró-UNEP e do Movimento Alfa, nomeadamente. No que concerne às iniciativas sancionadas pelo Estado, foi dado o exemplo do trabalho produtivo socialmente útil e a abertura da escola ao meio social, e do serviço cívico estudantil.

Este último envolvia um “conjunto de ações com populações ou instituições identificadas como sendo particularmente fragilizadas ou problemáticas”, que passava por atividades de alfabetização, apoio a cooperativas, ações de recolha etnográfica, ações no âmbito da saúde, entre outras.

Luísa Tiago de Oliveira referiu-se à mudança na cultura juvenil no novo quadro em Portugal de politização e de explosão dos movimentos sociais, em que as associações de estudantes deixaram de se destacar no movimento estudantil, na medida em que já “não são as únicas ilhas de democracia que existiam no quadro de um regime ditatorial”.

O “Movimento anti-propinas: Estado, Europa e partidos na politização da juventude universitária dos anos 90” foi o tema da apresentação de Ana Drago, que procurou lançar pistas sobre como é que, “num determinado contexto em Portugal, na primeira metade dos anos 90”, o movimento estudantil “se transforma num sujeito político que introduz um confronto fundamental na sociedade democrática portuguesa”.

A socióloga realçou que, a partir de 89/90, “o movimento estudantil é um dos principais atores de confronto com a introdução da agenda neoliberal em Portugal”. Este foi um processo que “começou pelas questões educativas e depois foi construindo de alguma forma cumulativa um percurso geracional”.

Ana Drago deixou algumas ideias chave sobre o movimento anti-propinas, que passam pela mobilização da “imagem romantizada da condição estudantil e das lutas heroicas do passado em Portugal mas também lá fora”; a “ideia central da autonomia do movimento, o que, no contexto da democracia portuguesa, “era a ideia de que é possível ter ação política sem estar necessariamente vinculada aos partidos, embora, na verdade, a parte significativa dos elementos mais politizados deste movimento tivessem pertencido a partidos”; a centralidade das estruturas institucionais, “ou seja, não basta um explosão, são as associações académicas que aguentam o movimento nos seus momentos de refluxo”; a “agenda de confronto com a governação nacional, com o autoritarismo dos governos de Cavaco Silva mas também esta ideia de obstáculo ao desenvolvimento do país e do papel do Estado nesse projeto de desenvolvimento”.

Este movimento terá sido, de acordo com a socióloga, responsável pela “politização de toda uma geração”. Ana Drago apontou como o movimento anti-propinas “foi, de alguma forma, mal amado”: “ninguém o assumiu como seu e como estruturador nos diferentes projetos político-partidários. Ninguém se revê completamente, porque ele foi possível pela articulação de diferentes lógicas e até de diferentes agendas”, frisou a socióloga. E continuou: “Mas o seu sucesso e a sua capacidade de politização nesses anos 90 foi possível exatamente porque cruzou ali diferentes tipos de ideários”.

A Elísio Estanque coube desenvolver o tema “Tradições académicas e democracia: do anti-ativismo às novas lutas estudantis”. O sociólogo lembrou o papel das repúblicas na década de 60, e principalmente em 69, e apontou como as “referências da tradição académica e dos rituais académicos se conseguiram conjugar com o sentido de rebeldia”. Mas este foi um “período excecional”, na medida em que, “quando o clima geral de politização se intensifica, a mobilização da juventude para o terreno da política tem como consequência atenuar a intervenção ritualística das praxes e das tradições académicas. Isso aconteceu na I República e também no pós 25 de Abril”. E é certo que, desde o decreto do luto académico de 1969, também se registou uma alteração nesse panorama.

Já nos finais dos anos 70 e primeiros anos dos anos 80, “foi bastante controversa a retomada das tradições académicas”. Esse período foi “marcado por uma divisão ideológica muito clara entre esquerda e direita, sendo que, pelo menos na fase inicial, foi sobretudo a direita e alguns grupos de extrema-direita que mais pressão fizeram para recuperar rituais dos velhos tempos”.

Elísio Estanque criticou aquela que considera ser a atual “ligação algo promiscua e perversa entre as tradições académicas e as praxes e a dinâmica associativa”. “Temos assistido de uma forma cada vez mais nítida a exemplos de como se estrutura a mobilização dos estudantes para os atos eleitorais, muito fundado nas afinidades eletivas que se criam no contexto do acolhimento das praxes aos caloiros”, sendo que daí se extraem dividendos de natureza e resultados eleitorais no campo associativo”, vincou.

De acordo com o sociólogo, “a estrutura associativa e a universidade perdem, porque a pulsão crítica que o movimento estudantil poderia e deveria dar à própria democracia interna dentro da universidade fica altamente penalizado com os processos de canibalismo e lógica de cooptação que tem prevalecido”.

Na última intervenção deste painel, João Mineiro falou sobre “O Ensino Superior no século XXI: da gestão democrática à pós-democracia gestionária”, dando “um certo contributo para o que poderíamos classificar como uma espécie de sociologia de uma quase ausência do movimento estudantil no século XXI”, com a ressalva de “alguns momentos importantes da história recente do movimento estudantil”.

João Mineiro afirmou que “a derrota da luta contra as propinas abriu espaço a uma transformação estrutural do ensino superior português desde o final dos anos 90”, e que a fixação das propinas criou “uma nova macro-ideologia sobre o que é a universidade e a escola pública num sentido mais amplo”.

O sociólogo dá o exemplo da mudança no sistema de financiamento e de co-participação nesse financiamento; da introdução da ideia de que o estudante vai obter benefícios sociais da sua formação e, portanto, tem contribuir para o seu custo; da rutura no princípio da universalidade; da lógica de competição entre universidades, quer na fixação do preço quer na captação de estudantes; da mudança “da ideia de conhecimento a que se acede por via da cidadania para a ideia de um serviço a que se acede por via do consumo”. Esta é uma “transformação que depois enforma toda a legislação que vai sendo feita ao longo do tempo”.

Com o RGIES dá-se a reformulação de todo o princípio da gestão democrática das escolas. O fim da eleição direta do reitor, o fim da paridade alunos e professores, a introdução de membros externos à universidade, o reforço das lideranças executivas, o regime fundacional são disso exemplo.

Surge, neste contexto, um “novo paradigma gerencialista das instituições públicas”, caracterizado pela penetração de valores tipicamente do mercado e da gestão privada na esfera pública – o estudante-cliente; a diluição da fronteira entre público e privado na gestão das instituições do Estado; a lógica comercial na captação de estudantes e financiamento; o reforço dos poderes executivos; a pessoalidade e verticalidade das lógicas de gestão e decisão interna; alterações de financiamento; a mercantilização absoluta do campus; o fim da colegialidade e da participação dos estudantes nos órgãos de gestão.

O ensino superior vive assim hoje “o pior dos três mundos”: está “profundamente dependente do poder político”, com a “descapitalização pública das universidades”, e também dependente do mercado, e é caracterizado pela ausência de cultura democrática e de gestão participada.

No entender de João Mineiro, este contexto “permite compreender por que é que há desarticulação do movimento estudantil nos últimos 25 anos e por que é que não há forma de ressuscitar o movimento estudantil sem fazer uma reforma profunda da democracia nas instituições”.

O movimento estudantil e a juventude: hipóteses e caminhos

O terceiro e último painel, que decorreu das 17h às 19h, teve como tema O movimento estudantil e a juventude: hipóteses e caminhos.

A ativista estudantil Ana Teresa Fonseca, que integrou a Brigada Estudantil, defendeu que “hoje o estudante não é visto como alguém que tem efetivo poder e efetiva importância na condução do progresso da sociedade”. “Assistimos à mercantilização do aluno”, num “sistema capitalista e neoliberal em que nada mais resta do que respeitar a competividade dirigida pelo mercado”, avançou. Para Ana Teresa, a referência à empregabilidade e compatibilidade logo no início da Declaração de Bolonha é ilustrativa deste fenómeno.

O ensino universitário tornou-se assim “um meio para atingir o mais alto nível profissional possível, e não um fim para um desenvolvimento crítico, criativo e educacional de uma geração”. E, dentro das universidades, o RGIES veio a determinar um “papel do estudante quase simbólico”, em que a “democracia é quase uma performatividade”.

Segundo a ativista, “a lógica mercantil produz uma ótica muito individualista do estudante”, e a massa estudantil está “cada vez mais dispersa, competitiva e individualizada, em vez de una e coesa”.

Para Ana Teresa, “é possível ressuscitar o movimento estudantil, reinventando as formas de contestação e continuando a batalha contra esta lógica produtivista”.

A ativista alerta que “manter adormecido o movimento estudantil é manter adormecidas as conquistas de Abril, é ignorar a força estudantil e juvenil enquanto construtoras de uma sociedade progressista, democrática, livre, mas sempre exigente”.

“É preciso agarrar nas convicções como se de ações políticas se tratassem, porque o são. Sermos agentes ativos e críticos da sociedade é sermos dotados de ideias e, acima de tudo, de ideais que nos regem. O apolitismo e a tentativa de conotar pejorativamente a ideologia são formas de alienação de quem assim nos quer: adormecidos”, frisou.

Pedro Falcone, do Grupo Maria Quitéria, referiu a pluralidade do movimento estudantil e as questões identitárias que não podem ser ignoradas.

O estudante universitário apontou que “no epicentro de decisões do movimento estudantil falta um elo identitário que sirva de mediação entre o ideário do movimento estudantil coletivo e as aspirações estudantis localizadas”, sendo que “o elo identitário que foi criado a partir das políticas tradicionais já foi erudido”.

Pedro Falcone criticou a “profissionalização da política nas esferas estudantis, que está a distanciar os estudantes médios, que, na sua maioria, não tem vínculo partidário”.

Clarificando que não defende, de forma alguma, que “é preciso eliminar a organização partidária nas organizações estudantis”, o ativista indicou, no entanto, que “a partidarização cria um estilo de intervenção que dificulta o surgimento de uma forma de manifestação ou expressão informal ou alternativa”. E mencionou os “discursos de convencimento”, que partem “de uma conceção hierarquizada dos factos, dos militantes para com os estudantes”.

De acordo com Pedro Falcone, “muitos estudantes internacionais não se revêm nesse tipo de política”, porque esta nunca se procura aproximar da realidade dos estudantes internacionais.

O estudante universitário alertou ainda que “a luta contra a propina a nível geral às vezes obscurece a luta relativa à propina internacional”, com muitas pessoas a defenderem baixar a propina nacional e cobrar mais aos estudantes internacionais, por forma a “captar mais dinheiro e manter o ordenamento burocrático da universidade”.

Ana Rita Brás, doutoranda na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, trouxe a perspetiva da diversidade dos ativismos.

No seu entender, é fatalista dizer que o movimento estudantil está morto, que está adormecido, já que este “vai acontecendo em contextos muito diferentes daquele que é o institucional” e “diversos grupos vão resistindo aos ataques cada vez mais frequentes àquilo que é público”.

Ana Rita Brás deu o exemplo da luta contra a Fundação em Coimbra, por um movimento que agregou diversas associações e “alianças que podem ser o caminho no futuro”.

“Essas organizações não desapareceram, continuam a trabalhar em contextos mais sociais e culturais”, realçou, defendendo que o movimento estudantil “está disperso, mas continua a atuar”.

No que concerne à luta pela via institucional, esta está “cada vez mais difícil”, já que “a relação perversa nos órgãos de representação dos estudantes” faz com que “por aí a luta seja muito frustrante”.

E, por isso, a luta hoje “se faz não tanto pela via institucional, mas mais pela via quotidiana”.

Ainda que assumindo que Bolonha e o RJIES tenham condicionado “experiências coletivas de mobilização”, a ativista considera que não devemos “esquecer esses canais aos quais, por alguma razão, nos bloquearam o acesso”.

Na sua intervenção, Ana Rita Brás abordou também a questão da interseccionalidade da luta estudantil, e a necessidade de responder às diferentes dificuldades e opressões que os estudantes enfrentam nas universidades.

Este colóquio, que se insere na programação "Abril É Agora", foi organizado pela cooperativa CULTRA, o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, o Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra e o Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa.