Da estátua de Salazar ao “Centro Interpretativo do Estado Novo”

Da estátua de Salazar ao “Centro Interpretativo do Estado Novo”

20 Agosto 2023 |

Ao longo das últimas cinco décadas, os usos públicos do passado, nomeadamente a forma de evocar a ditadura do Estado Novo, o colonialismo e a própria Revolução de 1974-1975, foram um permanente campo de disputa. Por Francisco Bairrão Ruivo.

As representações físicas desses passados e a criação de espaços de memória ou de museus têm estado no centro de muitas polémicas e debates.

Em 2023 era anunciada, para maio desse ano, a abertura de uma primeira fase do Centro Interpretativo do Estado Novo o que, até ver, não se confirmou. Para abril de 2024 está prevista a abertura definitiva do Museu Nacional Resistência e Liberdade – Fortaleza de Peniche. Tanto quanto sabemos, o arranque de um Centro Interpretativo do Estado Novo, na antiga Escola-Cantina Salazar, no Vimieiro, freguesia onde nasceu António de Oliveira Salazar, em Santa Comba Dão, poderá assim acontecer antes ou no mesmo ano em que é inaugurado um museu nacional dedicado à resistência contra a ditadura e se cumprem os 50 anos do 25 de Abril.

Em fevereiro de 1975, em pleno processo revolucionário, a cabeça da estátua de Salazar em Santa Comba Dão era decepada. Era um gesto radical e violento de corte e condenação do passado que espelhava o que era, ainda, o consenso alargado relativamente à condenação da ditadura entre 1974 e 1976.

A estátua permaneceria decapitada até fevereiro de 1978 quando, já dentro da chamada “normalização democrática”, um grupo de cidadãos organiza a reposição da cabeça do ditador, numa sucessão de acontecimentos que culmina com a destruição à bomba da estátua que é então definitivamente retirada. Dois dias depois da explosão, tinha lugar em Lisboa uma das mais importantes homenagens às vítimas da ditadura, com a transladação dos restos mortais dos que foram mortos no Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde.

No rescaldo do rebentamento da estátua fala-se na possibilidade de criar um Museu dedicado a Salazar, na sua antiga casa no Vimieiro, para a qual é organizada uma recolha de fundos, e onde, eventualmente, seria colocada uma nova estátua do ditador1. O assunto perderá força nos anos seguintes, mas ressurgirá na década de 90 e terá desenvolvimentos no século XXI.

Em setembro de 2017, a Câmara Municipal de Santa Comba Dão assinou um protocolo com a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), para receber uma estátua de Salazar em bronze com 2,3 metros, que estava no Palácio Foz, e um busto em pedra, com 500 quilos2. Já em 2018, a autarquia manifestou a intenção de criar um Centro Interpretativo e Museu do Estado Novo, ao que se seguiu, em 2019, um abaixo-assinado com cerca de 18 mil assinaturas designado “Museu de Salazar, não!”.

A história da estátua e, de certa forma, do próprio museu parecem confirmar como “o processo social de reconstrução da memória colectiva seguiu (…) a cronologia da evolução política, social e cultural”3. Revela ainda a ausência de uma política pública de memória definida e como as políticas de memória se têm constituído mais como reações a movimentos vindos da sociedade do que fruto de uma estratégia clara.

A arte Fascista Faz Mal à Vista

A 28 de maio de 1974, dia em que se cumpriam quarenta e oito anos da instauração da Ditadura Militar, a estátua de Francisco Franco que representava Salazar, trajado de catedrático de Coimbra, é amarrada com cordas e embrulhada num grande pano negro por elementos do Movimento Democrático dos Artistas Plásticos (MDAP) que dizia não ser “partidário da destruição de obras de arte, ainda que símbolos condenáveis”. Com o mote “A arte fascista faz mal à vista” era um ato simbólico e não violento de condenação com algum humor do salazarismo. Integravam o MDAP, entre muitos outros, Julio Pomar, Nikias Skapinakis, Marcelino Vespeira ou Helena Almeida.

A estátua, que pontificava desde o final dos anos 50 num pátio do Palácio Foz, era uma réplica da que fora exposta na Exposição Internacional de Paris de 1937. Outra réplica fora colocada em Lourenço Marques4, em frente ao Liceu Salazar. Seria destruída à bomba em 19625 e pouco depois reconstruída. Depois da independência, foi deslocada para a Biblioteca Nacional em Maputo onde permanece até hoje voltada para uma parede.

Cortar a cabeça

A estátua de Salazar em Santa Comba Dão, encomendada e financiada pelo Ministério da Justiça, da autoria de Leopoldo de Almeida, é descerrada no dia 27 de abril de 1965, na praça em frente ao Tribunal, pelo Presidente da República, Américo Tomás, numa aparatosa cerimónia cujo registo encontramos nos aquivos da RTP: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/visita-de-americo-tomas-a-santa-comba-dao/.

Logo a seguir ao 25 de Abril, apareceria pintada com tintas vermelhas e amarelas e com a inscrição de frases antifascistas e revolucionárias até que, durante a noite de 17 de fevereiro de 1975, a cabeça da estátua é cortada com uma serra elétrica por um grupo de três homens que a levam consigo, refletindo a crescente radicalização do processo revolucionário no início de 1975. A ação é atribuída a operários da barragem vizinha da Aguieira, para onde a cabeça terá sido lançada, embora haja versões contraditórias. O pescoço é pintado com tinta vermelha e na base da estátua, por cima de algumas das frases emblemáticas de Salazar, lê-se “assassino”, “cão”, “porco” e “fundador da PIDE”.

Levantar a cabeça

Embora a Câmara Municipal tivesse deliberado a retirada da estátua, esta permanecerá decapitada no centro de Santa Comba Dão durante cerca de três anos. Em 1977 o assunto ressurge. Os santa-combenses, desagradados com a situação, exigem ou a retirada da estátua, defendida pela maioria, ou a sua restauração. Em agosto de 1977, o Ministério da Justiça manda retirar a estátua, mas a decisão volta a não se concretizar.

Em finais de 1977, é criada, por um grupo de cidadãos, uma “Comissão para a Restauração e Conservação da Estátua a Salazar” que, contando com o apoio da Assembleia Municipal, recolhe fundos e encomenda a fundição de uma nova cabeça. Panfletos de “amigos da Restauração e conservação da estátua a Salazar” anunciam a colocação da cabeça para as 11 horas do “Domingo Gordo”, dia 5 de fevereiro de 1978. No sábado, 4 de fevereiro, os Ministérios da Justiça e da Administração Interna proíbem a restauração da estátua e a manifestação que a acompanharia. A comissão decide então antecipar a colocação da cabeça para essa noite. Com centenas de pessoas a assistir, ainda antes da meia-noite, a cabeça é colocada, embora não soldada, sem incidentes. A GNR assiste a todo o processo sem intervir, porém, pelas 3 da manhã vai retirar a cabeça abrindo a porta a uma série de incidentes.

Dezenas de pessoas afluem manhã cedo para junto da estátua onde colocam flores. Cartazes anunciam: “A Guarda roubou a cabeça de Salazar. O povo exige a cabeça no lugar”. A população remove placas toponímicas da Avenida General Humberto Delgado e da Praça 25 de Abril, onde o “25” era substituído por “28” de Abril, dia do nascimento de Salazar. São erguidas barricadas, estradas cortadas e grita-se “Queremos a cabeça! Queremos a cabeça”. Os sinos da igreja tocam a rebate para chamar a população, num ambiente muito semelhante ao dos episódios de violência de extrema-direita que tiveram lugar no norte de Portugal em 1975.

Dezenas de elementos da GNR, fortemente armados, com capacetes, viseiras, escudos e cães, colocam-se à volta da estátua, e pela vila circulam jipes e carros de assalto com torres com autometralhadoras. A multidão concentrada junto da estátua é dispersada com gás lacrimogéneo e forças da GNR, algumas delas a cavalo, munidas de cassetetes e espadas, carregarão violentamente sobre a população. Momentos desta batalha campal podem ser vistos nesta peça dos arquivos da RTP: Incidentes em Santa Comba Dão – RTP Arquivos .

No total terão estado envolvidos cerca de cem efetivos da GNR e o saldo será de dezenas de feridos e a morte de uma mulher acidentalmente atingida por uma bala.

Os organizadores da reposição frisavam o carácter apolítico da iniciativa e negavam qualquer ligação à extrema-direita e simpatia pelo Estado Novo ou Salazar, evocando o facto de este ali ter nascido, a liberdade da população defender o património local e a indignidade e a humilhação que significava uma estátua sem cabeça no centro da vila.

Depois dos confrontos, procurando acalmar os ânimos, os presidentes da Câmara e da Assembleia Municipal garantem a restauração da estátua e a recolocação da cabeça. No entanto, acabarão por decidir pela sua retirada e entrega à família6 para que, posteriormente, a edilidade a colocasse noutro espaço público que não a praça do tribunal7.

Mas, mais uma vez, estátua permanecerá sem cabeça no centro da vila.

A Bomba

As hesitações dos poderes públicos e a repressão policial dão origem a uma situação cada vez mais tensa e de difícil solução, que de uma questão local assumira uma dimensão nacional.

A resolução do impasse acontecerá às 03:15 da madrugada de 16 de fevereiro de 1978 quando uma bomba destrói a estátua, numa ação planificada e executada pelo Partido Revolucionário do Proletariado/Brigadas Revolucionárias. O que dela sobra é recolhido pela Câmara Municipal e populares recolhem os despojos mais pequenos. No seu lugar seria construída uma fonte que em 2010 é transformada num monumento aos “heróis do ultramar” com a inscrição dos nomes dos dezasseis soldados do concelho de Santa Comba Dão mortos na Guerra Colonial.

A reposição da cabeça fora um ato objetivamente político, de apologia da ditadura e do ditador. Procurava, de algum modo, corrigir o que se considerava ter sido um ato de violência revolucionária, a decapitação.

A explosão era a resolução de uma situação que se arrastava desde o período revolucionário e a recusa radical do que se tinha como uma homenagem ao ditador e uma reabilitação do salazarismo e da ditadura, inscritas no equilíbrio de forças pós-25 de Novembro.

A memória e os seus ciclos

Seguindo os trabalhos de Manuel Loff ou de Luís Farinha, é possível identificar três grandes ciclos do ponto de vista da memória.

Um primeiro período, entre 1974 e 1976, marcado por um consenso generalizado relativamente à condenação da ditadura. Um segundo ciclo ganha forma nos equilíbrios pós 25 de Novembro de 1975 e perdurará até meados dos anos 90. Finalmente, um terceiro ciclo, na viragem do século, durante o qual são criados o Museu do Aljube Resistência e Liberdade e o Museu Nacional Resistência e Liberdade – Fortaleza de Peniche e se desenrola o debate acerca do Museu Salazar.

À luz destes três grandes períodos, o encobrimento da estátua no Palácio Foz e a decapitação da estátua em Santa Comba Dão inscrevem-se no primeiro ciclo. Coincidindo cronologicamente com o processo revolucionário, este período tem a marca da cultura antifascista e do consenso alargado relativamente à condenação do passado ditatorial e colonial, da denúncia dos seus crimes e homenagem às vítimas. Traduz-se na responsabilização cívica e criminal, ainda que incompleta, dos responsáveis da ditadura, através de saneamentos, suspensão de direitos políticos, julgamentos ou prisões.

Durante este período é criado o Serviço para a Coordenação da Extinção da PIDE/DGS e Legião Portuguesa e uma pouco relevante Comissão Nacional de Inquérito. Surgem ainda várias organizações que pugnam pela denúncia dos crimes da ditadura e a homenagem aos resistentes e presos políticos como a Associação de Ex-Presos Políticos Antifascistas (AEPPA) ou a União de Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP).

O segundo ciclo estrutura-se no encerramento do processo revolucionário. Luís Farinha fala num tempo de “recalcamento e amnésia – em parte impostos, em parte consentidos e desejados, e que durou até final do séc. XX”8 e Manuel Loff num “período de clara desvalorização política, social e ética das opções e da ação política daqueles que se haviam oposto e resistido à ditadura. E consequentemente, de desvalorização e silenciamento da sua memória”9.

A prioridade é claramente dada à reconciliação e pacificação da sociedade, há uma maior benevolência relativamente ao Estado Novo e uma certa invisibilização da sua natureza violenta e repressiva, refletindo um período de hegemonia conservadora internacionalmente e internamente com as vitórias eleitorais da Aliança Democrática (AD) em 1979 e os governos de Cavaco Silva (1983-1995) para quem “forças de orientação totalitária tentaram em 1974 e 1975 impor ao país outra ditadura de sinal contrário”10. Ganhava assim amplitude a tese do “Duplo Legado” da Democracia portuguesa por oposição aos supostos “autoritarismo” do Estado Novo e “totalitarismo” do processo revolucionário.

Apesar de tudo, este período encerra vários acontecimentos importantes no campo da memória e da justiça. Em 1977 o governo de Mário Soares criava a Comissão do Livro Negro do Regime Fascista que seria extinta em 1991 pelo governo de Cavaco Silva. São tomadas várias medidas no domínio das reparações financeiras e pensões a presos políticos e militantes antifascistas, cujo tempo de clandestinidade, exílio e prisão é contabilizado para efeitos de segurança social e reforma. Nos anos 80 e 90 registam-se ainda importantes desenvolvimentos na investigação sobre o Estado Novo e os arquivos da PIDE/DGS, na Torre do Tombo, são abertos aos investigadores, resultado de importante mobilização cívica.

Apenas dois dias haviam passado desde a explosão da estátua de Salazar quando, a 18 de fevereiro de 1978, tinha lugar em Lisboa a trasladação dos restos mortais dos trinta e dois homens mortos entre 1936 e 1954 no campo de Concentração do Tarrafal, para o Cemitério do Alto de São João, onde é erigido, por subscrição pública, um Mausoléu Memorial. Separados por alguns dias, a tentativa de recolocar a cabeça e a homenagem às vítimas mortais do Tarrafal, são dois atos de uso público da memória, não de iniciativa estatal mas de grupos de cidadãos, antagónicos: o primeiro homenageava o ditador, refletindo já a abertura de um segundo ciclo de memória, forjado nos ajustamentos pós 25 de Novembro. O segundo constituía-se como uma das mais importantes evocações da memória da resistência, de repúdio antifascista e de homenagem aos resistentes, ecoando ainda a dinâmica e a cultura antifascista dominantes no primeiro ciclo de memória.

1978 é o ano do regresso de Américo Tomás a Portugal, sem que tenha lugar qualquer julgamento. Um gesto de reconciliação e pacificação mas uma clara desculpabilização da ditadura e dos seus crimes. Está também em curso o julgamento dos elementos da PIDE/DGS, num momento em que a maioria estava em liberdade por ter já cumprido pena, por ter sido absolvida, por aguardar em liberdade o julgamento ou por dedução dos indultos e do tempo passado em prisão preventiva, em resultado de alterações posteriores ao 25 de Novembro à lei n.º 8/75, de criminalização dos elementos da PIDE/DGS.

Outros julgamentos visavam situações ocorridas durante processo revolucionário, ou em alguns casos ligeiramente depois, envolvendo ativistas e militantes, civis e militares, das esquerdas e resistentes antifascistas. Em muitos destes casos, como o julgamento dos assassinos de Humberto Delgado ou a prisão de Edmundo Pedro, por posse de armas que recebera durante os acontecimentos de 25 de Novembro de 1975, era, por vezes, percetível a intenção de desacreditar a oposição antifascista e as esquerdas. Outros casos polémicos são a prisão de cerca de vinte militantes do PRP/BR, de operários e elementos de comissões de trabalhadores devido à sua ação reivindicativa em 1975 ou de vários camponeses que se opunham às desocupações de terras no Alentejo, muitas vezes feitas com grande violência e duras intervenções policiais.

Quando o terrorismo de extrema-direita levava a cabo as suas últimas ações, o julgamento da “rede bombista” é mais uma situação causadora de indignação ao saldar-se na absolvição dos mandantes, líderes e financiadores. A benevolência relativamente à polícia política ou ao terrorismo de extrema-direita mobilizava à esquerda muitas vozes críticas que denunciavam o facto de se prender à esquerda e libertar à direita e para as ameaças à democracia colocadas pela reorganização das direitas radicais.

Refletindo um pouco de tudo isto, fora criado em 1977 o Tribunal Cívico Humberto Delgado (TCHD), tribunal de opinião e de combate pela justiça antifascista. Em 1978 o Primeiro-ministro, Mário Soares, alertara para o “renascer de certas organizações de tipo vincadamente fascista e neossalazarista” e seria aprovada a Lei 64/78 que proibia existência de organizações “que perfilhem a ideologia fascista”11. O Expresso avança que organizações e personalidades da extrema-direita preparavam para dia 28 de abril, data do aniversário de Salazar, uma resposta às comemorações do 25 de Abril com a organização de excursões a Santa Comba Dão para proteger a colocação de uma nova estátua do ditador que estaria já pronta12. No dia em que tinha lugar a primeira sessão do TCHD, era morto pela polícia o militante da UDP José Jorge Morais e gravemente ferido Jorge Falcato, quando protestavam contra a manifestação de 10 de Junho organizada pela extrema-direita. Na véspera do dia 25 de novembro de 1978, jovens estudantes de extrema-direita, comemorando aquela data, assaltam e vandalizam várias sedes de partidos de esquerda no Porto13.

Finalmente, a viragem do século trouxe um terceiro ciclo de memória. Segundo Luís Farinha o “início do séc. XXI ficou marcado pela reivindicação do Direito à Memória, levada a cabo por ‘grupos promotores da Memória’ e por ex-resistentes, ex-presos políticos e perseguidos pelo regime ditatorial”14. Para Manuel Loff “os últimos anos do século significaram, por fim, a recuperação de muita da memória resistencial que se silenciara até ao 20º aniversário” do 25 de Abril em 199415.

É um tempo de exigência de políticas públicas que respeitassem e valorizassem a luta dos resistentes e de memorialização ou criação de locais de memória. Há uma reemergência da memória da resistência com a mobilização dos resistentes que publicam livros de memórias ou biografias, dão entrevistas, visitam escolas, fazem intervenções públicas ou dinamizam online páginas dedicadas à memória antifascista. Os próprios resistentes empenham-se na investigação histórica, muitas vezes em ligação a organizações como a URAP, o NAM (Não Apaguem a Memória) ou a Associação de Exilados Políticos Portugueses (AEP61-74). Registaram-se, ainda, grandes desenvolvimentos na investigação académica sobre temas como a resistência, a violência, os tribunais e a polícia política ou o colonialismo e o pós-colonialismo.

Data ainda deste último período a criação, em 2015, do primeiro lugar de memória de iniciativa pública, com tutela camarária embora feito em articulação com o governo, o Museu do Aljube Resistência e Liberdade. Foi, em importante medida, resultado da mobilização de cidadãos e organizações de memória, como o NAM, que, na sequência da transformação da sede da PIDE em condomínio fechado, se mobilizam para que fosse criado um “local de memória da resistência ao fascismo" na cadeia do Aljube. A criação do Museu do Aljube e do Museu Nacional Resistência e Liberdade em Peniche acabam por incorporar algumas das principais dimensões do lastro de incitativas e organizações elencadas: a denúncia dos crimes e da repressão, a justiça criminal ou simbólica, a homenagem aos resistentes e a investigação dos crimes da ditadura e do aparelho repressivo, concretizando a revindicação de memorialização ou criação de locais de memória.

Foi durante este último ciclo de memória que, não obstante todo este processo de revalorização da memória da resistência, ressurgiu o debate em torno de um espaço museológico ou de memória dedicado a António de Oliveira Salazar na sua terra natal. Depois do referido abaixo-assinado “Museu de Salazar, não!”, o Parlamento condenou em 2019 a criação do “Museu Salazar” a partir de uma iniciativa do PCP, com votos a favoráveis deste, de PS, BE e PEV e as abstenções de PSD e CDS, o que, porém, não impediu que o município avançasse com o projeto.

Conclusão

A “explosão da memória” antifascista e da resistência das primeiras décadas do século XXI não significou uma pacificação nas disputas em torno da evocação da ditadura ou da revolução. Recentemente, as mortes de Otelo Saraiva de Carvalho e Marcelino da Mata em 2021 ou as regulares evocações à direita do 25 de Novembro mostram como periodicamente estes debates se intensificam. O monumento de homenagem a Vasco Gonçalves proposto pela Associação Conquistas da Revolução trouxe velhos debates acerca do período revolucionário. A substituição dos arranjos florais por brasões das ex-colónias portuguesas construídos em pedra na Praça do Império, em Belém, ou o impasse em torno do Memorial à Escravatura a erguer em Lisboa, mostram como as disputas da memória se centram cada vez mais no passado colonial.

A primeira ou uma das primeiras vezes em que se ouviu falar na possibilidade de criar em Santa Comba Dão um museu dedicado a Salazar foi, como vimos, em 1978. Em 2018, a ideia ressurge na forma de um Centro Interpretativo e Museu do Estado Novo, integrado numa Rota das Figuras Históricas e com assessoria científica do Centro de Estudos e Interdisciplinares do Século XX (CEIS20), da Universidade de Coimbra, que posteriormente se desligará do projeto.

Não obstante o voto de condenação na Assembleia da República e a grande mobilização da sociedade civil, nomeadamente de vários ex-presos políticos, sintoma de como os resistentes estavam mobilizados para os combates da memória, o presidente da Câmara de Santa Comba Dão anunciou para maio de 2023 a abertura do Centro Interpretativo na Escola-Cantina Salazar, na Avenida António de Oliveira Salazar. Os seus apoiantes promoveram a petição online “Museu Salazar, sim” que reuniu cerca de 11 mil assinaturas em resposta à referida petição contra o museu com cerca de 18 mil. Em agosto de 2019, duzentos e quatro ex-presos políticos enviaram ao Presidente da República e ao Primeiro-ministro uma carta manifestando o seu “veemente repúdio” relativamente à criação de “um Museu Salazar”.

Cinquenta anos depois do 25 de Abril, a Resistência e a Liberdade terão, finalmente, um Museu Nacional a elas dedicado com a inauguração em 2024 do Museu Nacional Resistência e Liberdade – Fortaleza de Peniche, também ele fruto da mobilização cívica e de um contexto político favorável no Parlamento. No campo da memória da resistência aguarda-se o memorial aos Presos e Perseguidos Políticos (1926-1974) no Largo da Boa-Hora, aprovado, por unanimidade, pela Câmara de Lisboa em maio de 2021. Finalmente, no Porto está em curso há vários anos a luta pela criação do Museu da Resistência Antifascista no edifício onde funcionou a delegação da PIDE na rua do Heroísmo e está hoje instalado o Museu Militar.

Ao completarem-se as primeiras cinco décadas de democracia, poderá estar para breve a abertura de um espaço dedicado a Salazar. Mais ou menos crítico, mais ou menos apologético, com maior ou menor isenção, não deixará de ser na terra-natal do ditador, na rua com o seu nome. Como escreveu Miguel Cardina “fazer um centro interpretativo no Vimieiro não é igual a fazê-lo num outro local qualquer”16. A dimensão local é assim um elemento crítico, levando a que ditaduras e ditadores sejam despolitizados em nome do desenvolvimento local e dos proveitos económicos que este tipo de museus podem trazer.

São inúmeros os desafios museológicos, científicos ou historiográficos, mas sobretudo, éticos e morais, quando se evoca e musealiza passados traumáticos, violentos e ditatoriais. O museu dedicado a Estaline na Geórgia, o caso de Predappio em Itália ou de um museu dedicado a Mussolini ou à República Social Italiana mostram a força, enquanto atração turística e fonte de receita, destes locais e a dificuldade em escapar a uma certa nostalgia e hagiografia ou pelo menos reverência às figuras que os inspiraram, sobretudo quando construídos nos seus locais de nascimento ou sepultamento.

 

 

Francisco Bairrão Ruivo

Historiador

Instituto de História Contemporânea.

 

1 O Diabo, 14 de março de 1978.

2 Público, 13 de dezembro de 2019.

3 Manuel Loff, Luciana Soutelo e Filipe Piedade, Ditaduras e Revolução - Democracia e políticas da memória, Coimbra, Almedina, 2014, p.28.

4 João Medina, Salazar, Hitler e Franco. Estudos sobre Salazar e a ditadura, Lisboa, Livros Horizonte, 2000, pp.194-196.

5 “Atitudes Individuais Subversivas, Suspeitas Ou Susceptíveis De Subversividade No Distrito De Lourenço Marques”, Serviços de Centralização e Coordenação de Informações de Moçambique, n.º 1063. ANTT.

6 Opção, 16 a 22 de fevereiro de 1978.

7 O Diabo, 14 de fevereiro de 1978.

8 Luís Farinha, “Conviver com o passado – uma tarefa sem fim à vista”, in Disputa da Memória, Museu do Aljube Resistência e Liberdade, 2022, p.8. https://www.museudoaljube.pt/wp-content/uploads/2022/03/2022_Disputa-da-Memoria_CC.pdf

9 Manuel Loff, Luciana Soutelo e Filipe Piedade, Op. Cit., p.62.

10 Manuel Loff, Luciana Soutelo e Filipe Piedade, Op. Cit., p.69.

11 Joana Rebelo Morais, Filipa Raimundo, “Em nome da ‘Verdade Histórica’: A Comissão Do Livro Negro sobre O Regime Fascista. Uma Comissão de Verdade na Democratização Portuguesa (1977-1991)”, in António Costa Pinto, Maria Paula Araújo (Ed.), Democratização, Memória e Justiça de Transição nos Países Lusófonos, Rio de Janeiro, Autografia, 2015, pp-108-109.

12 Expresso, 15 de abril de 1978.

13 Página Um, 30 de novembro de 1978.

14 Luís Farinha, Op. Cit., p.5.

15 Manuel Loff, Luciana Soutelo e Filipe Piedade, Op. Cit., p.114.

16 Miguel Cardina, Patrimonializar Salazar?, Público, 6 de Setembro de 2019.