Em conversa com a jornalista Liliana Borges, do jornal Público, no Largo do Carmo, em Lisboa, o historiador Miguel Cardina e a encenadora Sara Barros Leitão falam sobre o projeto “Abril é Agora”.

O historiador Miguel Cardina e a encenadora Sara Barros Leitão falam sobre o projeto “Abril é Agora”.

“Abril ainda não chegou a todo o lado”

3 Março 2022 |

Em conversa com a jornalista Liliana Borges, do jornal Público, no Largo do Carmo, em Lisboa, o historiador Miguel Cardina e a encenadora Sara Barros Leitão falam sobre o projeto “Abril é Agora”.

A associação cultural CULTRA, em parceria com várias entidades do movimento associativo e cultural, grupos de teatro, cineastas, unidades de investigação académica e investigadores, ex-presas e presos políticos, ativistas sindicais e políticos do período revolucionário, mulheres e homens de todas as correntes da resistência antifascista e dos combates da Revolução, organiza um conjunto de iniciativas que vão decorrer ao longo de 2022 e prolongar-se até 2026.

Miguel Cardina explica que este projeto “não surge numa lógica de contraposição ou disputa”, sendo complementar às celebrações “oficiais”. O “Abril é Agora” quer “afirmar o legado da resistência política na luta contra a ditadura, o lugar da guerra colonial e do anticolonialismo no momento final do Estado Novo”, frisa.

Para o historiador, “falar de Abril hoje é também recordar as lutas pelo socialismo, pela emancipação, que foram feitas durante aqueles anos, em que algumas continuaram por cumprir, e outras marcaram a realidade política hoje”.

Há também “uma série de temas e camadas que sempre existiram mas que em ‘74 não estavam na ordem do dia, porque a vida é também as suas circunstâncias. E se à data não havia esse espaço, em 2022 é preciso que haja”, afirma, por sua vez, Sara Barros Leitão. É o caso de “toda a questão LGBT, do feminismo interseccional, do combate ao racismo” e do combate às alterações climáticas, por exemplo.

“Abril ainda não chegou a todo o lado”, vinca a encenadora, apontando o quão importante é garantir que todas as pessoas possam sentir que esta “é também uma memória sua que devem reivindicar, que não fica sobre a alçada de ninguém”.

Para Sara Barros Leitão, esta questão ganha uma nova dimensão “num ano em que, pela primeira vez, temos uma representação antidemocrática e que se assume contra os valores de Abril”. “A dimensão e representação dessas forças dão legitimidade a vozes e opressões contra direitos que achávamos que já estavam conquistados, convictos que não voltaríamos atrás”, alerta.

Miguel Cardina refere, por sua vez, que “vamos ter discursos de nostalgia explícita do fascismo ou de desculpabilização – quando não mesmo de nostalgia e afirmação do passado colonial e nacionalista português – ou uma tentativa de confundir Abril com Novembro”.

“Isso é muito típico de uma certa direita. O CDS tentou, certos sectores do PSD também o tentaram e, mais recentemente, a Iniciativa Liberal também o fez. É um erro histórico e uma tentativa de rescrever o passado para usos muito concretos no presente”, sublinha o historiador.

“Abril foi o derrube da ditadura, mas tivemos dificuldades em entendê-lo como o corte com o colonialismo. E Abril também foi resultado direto dessa luta anticolonial, mas não é assumido enquanto tal”, refere Miguel Cardina.

De acordo com o historiador, “os heróis de Abril são os militares que lutaram na Revolução, mas também os africanos que permitiram criar condições para o derrube da ditadura”.

“Falarmos do fascismo da história colonial e do passado é termos de enfrentar de frente a desigualdade ainda hoje existente entre homens e mulheres. É termos de enfrentar a história que a tornou possível, perceber como desativar isso e falar de um historial colonial que ainda nos pesa”, defende.

E deixa o alerta: “Se não o fizermos, não percebemos porque é que o racismo está tão embebido na sociedade portuguesa”.

Links para a entrevista do Público:

“O discurso que Marcelo fez no último 25 de Abril foi importante, mas limitado”