Crise Académica de 62

Crise Académica de 62.

24 de Março: o início da revolta estudantil contra o regime

16 Março 2022 |

No próximo dia 24 de Março assinala-se uma dupla efeméride. Por um lado, celebra-se nessa data o facto do regime democrático ter ultrapassado em duração os longos 48 anos da ditadura. Mas o dia 24 marca também o início da revolta estudantil contra o regime. Por Fernando Rosas.

No próximo dia 24 de Março assinala-se uma dupla efeméride. Por um lado, celebra-se nessa data o facto do regime democrático ter ultrapassado em duração os longos 48 anos do regime ditatorial. Meio século do século XX português sob o domínio de uma ditadura que suprimiu as liberdades públicas, proibiu o pluralismo político e associativo, interditou o direito à greve e os sindicatos livres, impôs a censura prévia a todas as formas de expressão e perseguiu, prendeu e torturou dezenas de milhares de mulheres e homens que tiveram a coragem de lhe resistir. Nesse dia em que a democracia começa a durar mais tempo do que a ditadura do Estado Novo, por isso mesmo, se inicia a celebração do cinquentenário do 25 de Abril, da Liberdade, do fim da guerra colonial e da enorme esperança que a Democracia despertou.

Mas o 24 de Março tem outro simbolismo prévio que está associado à efeméride posterior da duração da democracia. Marca o início da revolta estudantil contra o regime, o corte do movimento estudantil com a ditadura salazarista nesse 24 de Março de 1962, Dia do Estudante, que o regime proibiu brutalmente invadindo a Cidade Universitária de Lisboa com a polícia de Choque, atacando à coronhada os protestos estudantis que entretanto se concentraram no Estádio Universitário. Aí acorreu o então Reitor da Universidade Clássica, Marcelo Caetano, interpondo-se entre o cerco policial e os estudantes e pedindo-lhes que se dirigissem a um restaurante no Lumiar onde a reitoria oferecia um jantar. Quando em manifestação para lá se encaminharam, no Campo Grande, os estudantes foram desprevenidamente alvo de uma nova e particularmente violenta carga da polícia de choque que originou grande número de feridos. Nessa noite, reunidos ainda no tal restaurante onde acabaram por chegar, os dirigentes da Reunião Inter Associações (RIA) – cujo secretário geral era Jorge Sampaio – decretaram o então ainda pudicamente chamado “luto académico”, ou seja, a greve geral às aulas, maciçamente seguida em toda a Academia nos dias seguintes.

O acontecimento teve uma imensa repercussão: esse grupo privilegiado que então eram os estudantes universitários, constituía a jovem elite em que o poder estabelecido confiava para a continuidade do regime. Era ela que contra ele se levantava, mercê da sua juventude, do seu acesso à cultura, da sua inusitada capacidade de abraçar as causas generosas da justiça e da liberdade e de superar os constrangimentos da sua origem social. E a força, o entusiasmo e a alegria dessa mobilização representariam a partir daí uma constante ameaça para o regime da qual ele jamais se lograria libertar até à sua queda.

Nesses dias de turbulência que se estende a todas as universidades do país (Lisboa, Coimbra e Porto), no início de Abril, Marcelo Caetano consegue obter uma audiência com o Ministro da Educação Nacional, um ultraconservador lente coimbrão que dava pelo nome de Lopes de Almeida, com o Reitor e os dirigentes das Associações de Estudantes. Surpreendentemente, dessa reunião sai uma autorização do Ministro para a realização do Dia do Estudante, festejada com a alegria da vitória pelo movimento estudantil. Por ele, mas não por Salazar, talvez quem, no interior do regime, melhor anteviu onde conduziria o deixar correr a torrente vitoriosa do protesto estudantil. Convocado o Conselho de Ministros, conclave que só reunia em contextos muito especiais, o então chefe do Governo interpela diretamente um acobardado Ministro da Educação: “afinal V. Exa autorizou ou não o Dia do Estudante?” Em pânico, Lopes de Almeida mentiu respondendo que o tinha proibido. O ditador sabia que ele mentia e se expunha ao vexame público de dar o dito por o não dito e faltar à palavra dada ao Reitor e aos estudantes. Mas para o seu propósito isso era o menos, e retorquiu sibilino: “Fez V. Exa muito bem. Se assim não fosse, seriam eles a estar sentados nestas cadeiras daqui a dez anos”. Mesmo com a renovação da proibição e a dura repressão que se seguiu contra o que seria a mais prolongada greve estudantil nas universidades portuguesas (ela prolongar-se-ia pela greve aos exames), o velho ditador só erraria por dois anos.

O 24 de Março ficou, até hoje, como o Dia do Estudante. Mal sabiam as várias gerações de jovens que corajosamente o empunhariam como símbolo do antifascismo e do anticolonialismo nos anos que se seguiram que algures no futuro, fruto de uma insondável justiça histórica, ele se tornaria o dia a mais da democracia portuguesa sobre a ditadura.


 

*Fernando Rosas - Historiador. Professor Emérito da Universidade Nova de Lisboa